O mar ao leste do continente de Lafaza estava agitado como o
coração dos tripulantes de ambas as embarcações que se encontravam lado a lado
no meio daquela imensidão azul. As ondas pareciam brigar entre si, como se o
vento as empurrassem em direções contrárias, quase criando pequenos
redemoinhos. De um lado o belo navio de madeira marrom clara, com linhas
pintadas em detalhes rosados, num tom simples e feminino. Em sua proa, feita
também de madeira, uma sereia apontava para frente, sempre ditando a ordem de
avanço. Seus cabelos, mesmo de madeira, eram pintados num forte tom de vermelho,
a marca registrada daquele navio que se chamava Ruiva.
Do
outro lado, um navio de madeira escura, quase preta. Podia-se notar que era mal
cuidado, diferente do primeiro. Não tinha luxo nem mesmo detalhes que fizesse
jus a sua superioridade. Mas no topo do mastro principal, a bandeira que criava
desespero nos corações de homens em toda Lafaza, tremulava fortemente com o
vento. Uma bandeira de fundo negro, com o desenho de uma caveira. Aquele era o Morte Certa.

Ruiva tinha em torno de 24 metros de
largura, um navio pequeno quando comparado com os 35 metros do navio negro ao
seu lado, que embora rude era ainda mais assustador do que o primeiro com seus
grande canhões enferrujados apontando para leste e oeste, parecendo sempre
prontos para cuspir bolas de ferro de suas bocas arredondadas. A artilharia do Ruiva era menor, mas não menos perigosa.
Seus canhões brancos pareciam feitos de porcelana se olhados de longe, embora
com as saídas menores que os do Morte
Certa eram em maior número, cobrindo não apenas os lados do navio, mas
também sua frente e trás.
Nenhum
canhão estava atacando naquele momento, e embora o som do mar e do vento
naquela área fossem quase ensurdecedores, os tripulantes de ambos os navios
estavam em silencio total.
Uma
prancha de madeira fora posta de um navio para o outro enquanto no Morte Certa seu capitão estava sentado
numa espécie de trono de madeira, bem em frente à uma porta que levava a cabine
do capitão.
O
homem sentado no trono não era ninguém menos que Barba Negra, o temido. Um
homem vivido e experiente nos mares de Gensõ. Assassino, ladrão, estuprador e
acima de tudo... Pirata. Seu nome, tirado de um livro antigo, era cantado não
só em Lafaza, o continente que tinha piratas como um medo costumeiro. O homem,
dizem algumas canções, já havia atacado outros continente e até mesmo outros
mundos. Era um homem muito cruel. Quase não tinha cabelo em sua cabeça, mas o
que faltava no topo era o que sobrava no queixo. Sua barba era espessa e negra,
com algumas tranças e até poucos enfeites que demonstravam um sutil toque de
vaidade. Em sua cintura um sabre bonito e bem cuidado e em sua mão, um cachimbo
cuspia fumaça enquanto o homem olhava, com apenas seu único olho vermelho que
não estava escondido atrás do tapa-olho àquele que se aproximava do outro
navio.
Aquele
não... Aquela...
Vinda
do Ruiva, vinha sua capitã, uma
mulher que em pouco tempo fizera uma lista de terror se não grande como o de
Barba Negra, talvez próxima. Era uma mulher cruel, embora seu rosto quase
angelical negasse isso até a morte. Usava roupas apertadas e sensuais, que ao
contrario de Barba Negra com ruas roupas rasgadas e sujas, demonstrava uma
vaidade sem conta. Nos lábios da mulher um lindo sorriso vermelho enquanto o
som de seu salto era ouvido bater na madeira do convés do Morte Certa.
Ploc, ploc, ploc, ploc!
Ela
parou na frente do capitão e o vento fez seus cabelos dançarem. Cada fio era
belo, cada tonalidade parecia um arco-íris de uma só cor, que se movia com
graciosidade e selvageria, como uma cascata de fogo. Uma cor que dera um nome
para a mesma.
--
Bárbara Ruiva... – Barba Negra falara com sua voz que lembrava os trovões de um
dia de tempestade em alto mar, apoiando os cotovelos em suas pernas dobradas. –
É mesmo muita audácia escolher um nome tão parecido do meu, cometer atos tão
parecidos com os meus e ainda aparecer em meu navio. – Ele puxou o cachimbo com
os lábios escuros, secos e quebrados e arrancou uma linha de fumaça do mesmo,
que foi levada com o vento selvagem do local, dançando no ar como uma fita
cinza. – Está tentando se tornar abertamente minha inimiga jurada?
Bárbara
pôs a mão na cintura e jogando os cabelos para trás sorriu maliciosamente. –
Inimiga jurada? Barba Negra... Você não entendeu, não é mesmo? – Sua voz
parecia ser própria de uma sereia. –
Quero me unir a você...
Alguns
marinheiros pareceram se afastar de ambos enquanto Barba Negra fitava com
apenas seu único olho vermelho o cachimbo de madeira lisa, como se fosse à
primeira vez que olhava aquele objeto.
--
Unir-se a mim? – Sua cabeça levantou, fitando a outra diretamente nos olhos.
Bárbara
não fraquejava, embora os tripulantes ao redor pensassem que a mulher fosse
fugir nas primeiras palavras do capitão. – Quem você pensa que é para unir-se a
mim? É apenas uma mulher...
--
Apenas uma mulher? – Ela perguntou num tom firme, aproximando-se ainda mais
dele. Assim que chegara a cinco passos do capitão o som de espadas sendo
desembainhadas fora ouvido. Logo todos os piratas ao redor dos dois estavam com
espadas de aço em mãos, brilhando com a luz do sol. Do outro lado, no Ruiva os poucos tripulantes que
acompanharam sua capitã faziam o mesmo, embora em um número dez vezes menor do
que no navio de Barba Negra, era uma forma de demonstrar que estavam ali para
conversas e negociações, não para brigas.
Bárbara
parou assim que viu que todos se armaram, mas inclinou-se um pouco pra frente e
olhou bem para o capitão enfrentando-o descaradamente.
--
Você deve passar tempo demais em seu navio, Barba, ou então não tem ouvido
muito bem o que os bardos em todas tavernas em Lafaza estão contando, creio que
até os ventos de Drimlaê já devem sussurrar sobre mim...
--
Sou um homem que prefere um chão que se movimenta sobre a água do que algo
fixo, não saio muito do Morte Certa.
– Ele voltou a olhar para o cachimbo, rodando-o em suas mãos. – Mas sim, tenho
ouvido falar bastante em seu nome nos últimos tempos, Ruiva... Ouvindo coisas
que se forem verdade, eu realmente estou admirado...
Um
murmúrio baixo podia ser ouvido entre o vento. Os piratas de Barba Negra
estavam comentando que o capitão nunca se admirava com nada.
--
Tem um modo de vida bem parecido com o meu, mulher... – Barba Negra continuou.
– Mesmas táticas de batalha, mesmas idéias de pilhagem... Alguns dizem que até
mesmo os locais que guardamos nosso ouro são próximos... – Ele sorriu com a
ideia, seus lábios secos e cobertos de pelos mostraram dentes podres e marrons,
mas nesse meio dois dentes de ouro, um inferior e outro superior, brilharam
quando o sorriso se fez. – Me pergunto onde aprendeu isso...
--
Observação e estudo... O que eu tenho de aparência, eu tenho de inteligência.
Desde pequena decidi ser pirata, talvez eu um dia lhe conte o motivo dessa
escolha. Acontece que para mim, você é quase um herói... – Ela sorriu para ele,
um sorriso que desarmaria qualquer homem que tivesse coração. O que não era o caso
de Barba Negra.
--
Você tem crescido rapidamente no ramo, aprendido com “observação e estudo” nos
últimos anos aquilo que aprendi em décadas com experiência. É realmente
admirável, mas isso são palavras, são historias... E ainda não entendi seu objetivo
aqui hoje. Gostaria que fosse clara e rápida, tenho coisas a fazer e não muito
tempo a perder...
--
Eu juntei um grande numero de piratas nesse meio tempo, Barba, tenho uma frota
que é quase do tamanho da sua, eu sou a segunda maior pirata de Gensõ... – Ela
jogou o cabelo para trás, que balançou novamente com o vento, tirando-o do
rosto. – Eu proponho uma aliança! Juntar meus navios e os seus e invadir
Lafaza! Tomar as três Grandes Ilhas da Água e sermos os novos Líderes dessa
porcaria de local. Primeiro o continente... Depois, quem sabe o mundo... Quem
nos impediria? Sua experiência, seu poder, junto à minha inteligência e minha
beleza... Seriamos invencíveis.
Barba
Negra puxou novamente a fumaça do cachimbo e sentou-se mais confortavelmente no
trono de madeira.
--
Você é apenas uma mulher que deu sorte... – Ele falou de olhos fechados e
sorriso nos lábios enquanto parecia sentir-se bem com o cheiro da fumaça do
cachimbo. – Não tem a habilidade necessária de um pirata...
--
O que? – Barbara gritou. Aquilo não pareceu ofender o capitão, muito pelo ao
contrario, ele parecia estar se divertindo com a situação.
Barbara
sacou sua espada. O aço brilhou em sua lamina larga e meio inclinada para cima,
como uma cimitarra. Inúmeros homens de Barba Negra já estavam com espadas em
mãos, prontos para atacar a mulher. No meio do convéns, girando lentamente num ângulo
de 360° e com a espada erguida a mulher gritava:
--
Se é assim Barba Negra, deixe-me demonstrar minha habilidade de luta... Vejo
que apenas quando houver sangue derramado em seu navio você acreditará em
minhas palavras! Escolha qualquer um de seus homens e eu o enfrentarei! Verá
que não sou apenas “uma mulher que deu sorte”!
Os
homens gritavam, oferecendo-se para lutar contra ela.
--
Deixa eu ir Barba Negra, vou calar a boca dessa vadia com minha espada!
--
Não, eu sou melhor espadachim que qualquer um!
--
Irei cortá-la da cabeça aos pés!
Mas
o capitão apenas levantou dois dedos em silencio. O suficiente para silenciar
cada homem ao seu redor.
Barbara
continuava a girar lentamente, apontando para os homens com a espada, encarando
cada face rude e feia ao seu redor.
--
Tenho uma ideia melhor... – Barba Negra se ajeitou mais uma vez no local onde se
sentava, como se estivesse incomodado com a falta de conforto. – Lhe darei
cinco minutos, não quero mortes em meu navio hoje, o mar não parecer estar com
sede de sangue. Nesses cinco minutos, meus homens tentarão impedir você, aquele
que lhe machucar será morto por mim mesmo... – Ele levantou um sorriso
zombeteiro para a mulher. – Seu objetivo? Encostar essa espada em mim...
Qualquer forma, um corte, um furo, tente arrancar uma mão minha, mulher, ouvir
dizer que um gancho no lugar dá um ar de elegância a um pirata.
O
rosto de Barbara não mostrava nenhuma expressão de felicidade, na verdade,
continuava de forma ameaçada, o que divertia os piratas de Barba Negra.
--
Combinado... – Antes mesmo de falar, a mulher já corria para o pirata com espada
em mãos, seus saltos gritavam sobre a madeira do chão do convés.
Barbara
Ruiva chegou perto do capitão do Morte
Certa, até que um grande pirata, que mais parecia um barril a empurrou com
um braço peludo e musculoso. A mulher fora empurrada alguns metros a distancia.
Outros
dos homens vieram para cima dela com adagas em mãos, com ataques rápidos e
precisos, mas que Barbara defendeu todos usando sua espada. A velocidade da
pirata era impressionante. Barba Negra apenas assistia tudo em silencio
enquanto ouvia o som do aço chocando-se com as pequenas adagas e observava o
movimento da mulher.
Ruiva
não era forte como metade dos homens de Barba, na verdade, perdia feio em força
física, sempre que chegava perto do capitão um braço ou um peitoral musculoso a
empurrava para trás. A mulher ouvia risadas e zombarias por todo navio. Ela
parou, olhou ao redor e pensou por um instante o que poderia fazer.
Sua
mente trabalhou rápido, avistou cordas soltas que pendiam do mastro principal.
Uma corda comprida que tremulava com o vento.
Barbara
correu para o mastro principal, afastando-se de Barba Negra. Os piratas
começaram a gritar piadas, dizendo que a mulher estava fugindo de medo e que
havia desisto, alguns gritavam que Barba Negra havia finalmente assustado-a com
o olhar. Mesmo correndo em direção contraria alguns homens continuavam impedindo-a
de se locomover, um dos piratas passou-lhe uma rasteira, derrubando-a no chão.
A mulher levantou-se numa velocidade impressionante, como se nem ao menos
tivesse caído. O que na mesma faltava em força ela tinha em velocidade. Seu
cabelo fazia um espetáculo à parte, seu corpo feminino e ágil movia-se com elegância
e delicadeza, como uma bailarina entre aqueles homens grandes e rudes.
Quando
chegou perto do mastro principal a mulher pulou alto e agarrou-se em uma das
cordas que vira, a mais comprida. Uma adaga quase cortara uma mecha de seu belo
cabelo. Com um empurrão da perna direita no mastro, Barbara impulsionou-se para
jogar seu corpo em direção à Barba Negra. Alguns homens jogavam adagas em
direção ao meio da corta, com a intenção de cortá-la. Muitas adagas foram
jogadas, até que uma acertou em cheio a corda que estava esticada como um pêndulo
indo em direção ao trono de madeira do capitão. A corda arrebentou e Barbara
fora lançada com força em direção ao trono, a mulher parecia voar, mas sua trajetória
não estava certa, não chegaria tão perto do trono como havia planeja, na verdade
cairia em cima de um grande pirata careca que segurava uma adaga que parecia
muito afiada.
Barbara
impulsionou-se no ar em direção ao pirata, moveu-se com graciosidade como se
estivesse voando, virou de ponta cabeça e assim que se aproximou do pirata, com
sua espada, bloqueou a adaga do outro e com a outra mão criou um impulso maior
na careca do homem, empurrando-se agora para perto do trono.
Tudo
aconteceu muito rápido. Os homens corriam em torno do trono, em direção à
pirata, a espada de Barbara correu no ar em direção ao peitoral de Barba Negra.
Um
corte.
Sangue
no chão.
Todos
pararam ao mesmo tempo, como se houvessem congelado. A imagem era assustadora,
a ponta da espada da mulher encostada levemente na camisa de Barba Negra em
direção a seu coração e um sabre atravessado pela costela de Ruiva, de um lado
para o outro. Barba havia atacado a mulher com seu sabre em uma velocidade
ainda mais impressionante do que qualquer um se atrevia realizar naquele navio.
Barbara Ruiva olhou no olho vermelho do capitão e soltou uma golfada de sangue
pela boca.
--
Impressionante... – O capitão sussurrou enquanto puxava com força o sabre de
dentro das costelas da mulher. Seu sangue caia no chão de um pequeno furo que o
sabre realizou, era tão vermelho quanto seu cabelo.
Os
piratas gritaram bravatas para o Ruiva,
enquanto os piratas de Barbara movimentam-se rapidamente no navio.
Barba
Negra levantou-se e olhou para Barbara que ainda respirava, embora com cuidado
e devagar enquanto também o encarava e segurando o buraco que sangrava em suas
costelas. A mulher ainda tinha um ar ameaçador mesmo nessas condições.
Os
piratas gritavam.
--
Vamos raspar o cabelo dela e pendurar em nossa bandeira!
--
Vamos estuprá-la enquanto ainda vive, fazer seus últimos suspiros serem os
piores!
--
Não! – Barba Negra olhou para a mulher e depois para os piratas. – Chamem um
clérigo ou um médico, o que quer que tenha poder de cura nesse maldito navio!
Curem-na, não a deixem morrer! Ela terá sua desejada aliança!
Os
piratas estavam incrédulos com aquelas palavras.
Um canhão do Ruiva atirou em Morte Certa
e um buraco fez-se no convés do navio. Havia poucos piratas do outro lado, mas
mesmo esses poucos correram pela prancha que sua capitã havia atravessado com
espadas em mãos. Poucas flechas ainda voaram de um navio para o outro.
-- Não matem! – Gritou Barba Negra. –
Capturem-nos e os amarrem em meu navio ainda com vida, usarei todos eles... –
Ele olhou para Barbara que respirava profundamente com as pernas fraquejando.
Um senhor mais velho do que a maioria dos piratas que estava já em batalha com
os outros se aproximou da mulher. Era um clérigo de manto azul marinho. –
Usarei todos eles... Todos... Você tem sua aliança, faça um bom uso dela! –
Barba Negra então entrou para a cabine do capitão.
***
A
batalha ocorria no convés do Morte Certa,
ouvia-se tiros, gritos e espadas, mas não havia nenhuma morte naquele dia, o
mar não estava com sede de sangue. Dentro da cabine do capitão, Barba Negra, o
homem mais temido nos mares de Gensõ, aproximou-se de um espelho que o refletia
da cabeça aos pés. A luz do sol entrava por uma pequena janela, iluminando o
homem quando o mesmo tirou sua camisa. Seu corpo, forte e peludo, típico de
homens do mar era o mesmo, mas no peito esquerdo, perto do coração, uma gota
rubra saia de um pequeno buraco, o capitão passou levemente um dedo e fitou
aquela única gota de sangue. Embora levemente, a espada de Barbara Ruiva havia
realmente atingido-o.
--
Impressionante! – Ele disse com um sorriso nos lábios secos.