Daekor está passando por dificuldades. A utilização da magia
divina no local fora tão grande que isso causara um distúrbio nos planos
espirituais, rasgando assim o véu que separava realidade com o mundo da fé.
Zumbis, demônios e anjos em constante batalha trazem o medo para a
população que antes vivia em harmonia e paz.
Os outros continentes de Gensõ enviam diariamente tropas e
suprimentos para o Reino do Espírito, ajudando assim na terrível Guerra
Espiritual.
Solasel e seus honrados samurais, Lafaza e sua forte linha
marítima e Shainar e seus guerreiros do deserto.
Mas um dos grandes reinos não se importa com a guerra que
ocorre em seu vizinho. Drimlaê, o grande Reino do Ar fora até agora o único que
não enviou suas tropas para ajudar o reino-irmão, e isso está causando uma
espécie de intriga entre nobres. Como pode um reino tão grande e poderoso não
se importar com um problema tão ruim assim?
O Castelo do Bobo é uma das construções mais poderosas que
se encontram em Shufu, a capital de Drimlaê. É a moradia de Tyrus, o rei que
carrega a alcunha de O bobo, por antes de alcançar o elevado posto de hoje ter
sido um simples bobo-da-corte.
Sentado no seu trono de madeira está Tyrus, o grande rei,
com uma expressão inocente e brincalhona no rosto, o rei é raramente levado a
sério por não demonstrar a seriedade exigida em seu posto. Do seu lado estava
sentada a rainha Sarah - embora algumas pessoas ainda insistam chamá-la por
princesa -. Casada com o agora rei em tempos difíceis, a rainha parecia nunca
reclamar, nem agradecer. Era uma mulher delicada e pura, não passava de suas 22
primaveras de aparência gentil e modos mais delicados ainda, uma rainha
perfeita.
A grande porta feita de madeira e ouro, que leva a sala do
trono é aberta e um ancião em vestes brancas e azuis celeste caminha por um
tapete que levava à frente do trono. O estandarte de Maagany, a deusa da
Bondade está bordada na parte de trás do manto do ancião que, com passos lentos
e silenciosos se aproxima do rei, que ria e brincava com guizos num chapéu
colorido que preenchia o local da coroa.
-- Olá... – Disse o Rei sem nem mesmo tirar os olhos dos
guizos, brincando com eles como um gato brinca com um novelo enquanto a rainha
ficava em silencio, achava melhor assim... Em terras masculinas algumas mulheres
eram obrigadas a ficar caladas.
-- Vossa Majestade... – A voz do ancião parecia que iria
falhar de tão fraca, assim como seu joelho ao se abaixar em uma nobre
reverencia. – Sou Hujjiel Lukkian, sacerdote de Maagany e mensageiro de David
XXI, regente de Daekor e Sumo-sacerdote da deusa da Bondade e da vida.
Assim que o nome de David XXI fora cantado da boca do
ancião, Tyrus colocou-se formalmente no trono e fitou os olhos azuis daquele à
sua frente. Olhou-o bem, desde seus longos cabelos brancos que combinavam
perfeitamente com a longa barba de mesma cor até a barra do seu manto que era
bem desenhada com vários símbolos de crucifixos.
-- David XXI? – Perguntou o rei.
-- Sim vossa Graça, trago-lhe notícias...
-- Mais noticias? – O rei sorriu. – O bruxo de Maagany me
manda noticias todas as noites, até sei o que já vou sonhar sabia? A bela
arcanjo de grandes seios vestida de vento me dizendo para ajudar na batalha
espiritual e blábláblá... Não entendo porque ele o enviou senhor Lukkian, a
arcanjo semi-nua é uma experiência mais prazerosa.
Sarah cerrou o punho ao lado do rei, mas continuou em
silencio.
-- Perdoe-me por minha pretensão, majestade... Mas creio que
essa seja a primeira vez que meu senhor envia um mensageiro para vós.
Tyrus o fitou novamente, enquanto apertava os olhos como uma
criança olhando um inseto curioso, pensou que o ancião poderia estar mentindo,
mas logo depois fez seu próprio julgamento e então teve certeza de que ele não
mentia.
-- Não importa... Então diga-me... Que notícias são essas
que meu amigo David me enviou? Ele está me convidando para um chá? Uma festa na
praia? Sabe...? O David é um chato ele nunca me convidou para essas coisas... –
Dizia o rei virando os olhos.
Hujjiel soltou um rápido e discreto suspiro, tentava conter
a paciência, o que era muito fácil de perder com Tyrus, o que era fácil perder
com qualquer seguidor de Tyali, o deus patrono do rei, o senhor dos humanos e
deus da ironia e poder.
-- Precisamos de ajuda na Guerra Espiritual! – O ancião fora
curto e mortal, não podia adiar aquela conversa senão O bobo acabaria fazendo-o
esquecer seus afazeres.
-- Viu? – O rei levantou-se e começou a caminhar na frente
do trono. – É a mesma coisa que a arcanjo me diz toda noite... “Por favor
Tyrus, ajuda a gente, ajuda? Ô! o povo ta morrendo, o povo ta chorando e você
tem poder, você pode e blábláblá” – Dizia ele numa voz afetada enquanto mexia
os quadris imitando alguém que só ele havia visto. – Rá! Bobagem! Não precisam
de mim... Todo mundo está ajudando não está? Pra que mais ajuda?
-- Vossa Graça... Toda ajuda é pouca nesse momento, estamos
lutando com poderes espirituais, são hordas e hordas de demônios indo
diariamente para as terras de Daekor, maculando nosso chão, derramando sangue
inocente... E logo isso pode se espalhar por toda Gensõ, como uma doença...
Isso pode chegar à Drimlaê.
Tyrus sentou-se novamente no trono, colocou o rosto entre as
mãos e pareceu chorar, mas mesmo com seus olhos demonstrando tristeza, ainda
estava com o grande sorriso vermelho, com dentes brancos que mais pareciam
presas.
-- Não posso... Eles enviaram tropas, o deus da ironia não
ficaria feliz se eu simplesmente enviasse tropas também, eu simplesmente não
posso mostrar o poder que eu possuo, eu devo ficar calado, devo apenas
assistir.
Sarah e Hujjiel o olharam, aflitos. Entenderam o porquê do rei
não ajudar, estava preso nos dogmas de sua própria crença. Tyali era assim, ele
não demonstrava o poder, para ele, quanto mais poderosa fosse a pessoa mais ela
deveria demonstrar ser fraca, quando mais fraca mais ela demonstraria ser
forte. Era um deus considerado louco por aqueles que tinham a rara coragem de
blasfemar.
Hujjiel levantou-se forçadamente, seus ossos rangeram e ele
sentiu uma pequena dor no corpo que a velhice trazia para si.
-- Não vou obrigar-lhe a ir contra seu deus, e tenho certeza
que Davi XXI muito menos, entendemos seu problema e o respeitamos. Com sua
licença Vossas Majestades... – O homem deu meia-volta e começou a caminhar para
a porta de ouro e madeira que levava para fora da sala do trono.
Tyrus não parecia mais triste, sua expressão era neutra,
como se nunca tivessem tido a conversa de agora.
Assim que Hujjiel colocou o pé na outra sala, Sarah, a
rainha levantou-se do trono e gritou:
--- Hujjiel Lukkian! Vamos ajudá-los!
Tyrus olhou para sua esposa como se fosse gritar, como se
fosse repetir tudo aquilo que acabara de falar para o sacerdote.
Sarah virou-se para o rei e fazendo uma reverencia formal e pediu:
-- Envie tropas, não seus melhores homens. Envie aqueles que
quiserem ir, aqueles que acham que vale a pena lutar por Daekor, aqueles que
querem honras e glorias... – Fez-se um silencio que logo foi quebrado pela
delicada voz da rainha. --... E eu os liderarei.
O sorriso de Tyrus aumentou ainda mais, se tornando algo
assustador. Hujjiel não entendera, mas a proposta da rainha fora clara para O
bobo. Ela era uma rainha, não uma guerreira. Nunca, em toda sua vida, pegara
numa espada. A coisa mais perigosa que deveria ter pegado eram as facas em
jantares formais em que ia para servir de ‘paisagem’.
-- É perfeito...! – Gritava Tyrus enquanto se colocava de
cabeça para baixo no trono de madeira. – Imagina se VOCÊ consegue vencer essa
guerra? Seria irônico, não há sacrifício melhor para Tyali! – Ele ria alto e
desesperado, lagrimas saiam de seus olhos enquanto os sorrisos aumentavam.
Hujjiel entendeu a situação e então virou-se para a rainha
que agora aparentava um rosto de tristeza e decepção.
-- Majestade... Não...
Antes que pudesse falar, Sarah levantou a mão enquanto
olhava seu marido sorrindo, cortando o sacerdote. Ela então caminhou pelo
tapete em direção a porta e assim que passou por Hujjiel falou: -- Aceite... É
a única forma... – Ela então saiu enquanto chamava empregadas e pedia para
trazer-lhe as melhores armas que pudessem encontrar.
O ancião via o rei que estava com o rosto vermelho de tanto
rir, fez uma reverencia que não fora nem percebida por Tyrus e saiu da sala em
silencio, enquanto ouvia os sorrisos Do bobo que se tornavam mais e mais
assustadores.
E logo isso se tornaria o assunto das bocas de Shufu. A rainha se tornara uma guerreira.
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